quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

XVIII

Peter Gric




Sinistra, amor, é a veloz fuga em que te desamparas riso
ou choro – comoventes – origens do meu: escuta-me,
escuta-me amor.

Não resistir e não poder absolutamente atingir-te no tormento,
na volúpia, e tu submerso, enquanto na superfície a pele
absorve toda a entrega de uma realidade derradeira: construída
no envolvimento da água (amor) cativando-se.
E no céu os pássaros, abandonando-se à primavera, são como o
meu corpo: rindo, rindo do horror deste inverno, amor.
Ali, a morte será como bailarina treinando a sua sombra ante
um espelho opaco.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

COISAS Y OLHOS

"jetzt
schreibst du."
Paul Celan


Desobedece
traça e sega
sob um coração
a nudez das coisas

agora. As coisas que só tu habitas
deflagram sem, a rigor, nada de ti
te obrigar a entregá-las
puras

agora. Há um riso
clandestino
deduz os olhos
embriaga o amor

agora. Reconheceste só
os olhos apodrecem-te
pássaros em metal
asas de cinza

agora. Ultrajadas as coisas habitam-te
tu dentro delas conflagras
poeira e sol

agora. O breve amor
ainda te pendura
no vento
gomos de sangue

agora. Faz uma lotaria
nos sentidos que dás
às coisas
armadilhas
a tua língua

agora. Dói beijar respirar
a boca sobre as coisas
útero de mel

agora. Não morras
sem me desprezar
remo na face
inundada

agora. Ninguém sabe
os nossos olhos
no corpo o desejo
do sexo

agora. Lavras os olhos
no fio a que atas as coisas
a cicatriz é varanda
molhada delas

agora. Sentir ciúme é fácil
nos olhos
perco o pranto mergulho
na piscina de pulgas

agora. Espesso das coisas
admito o coração
no salto
da carne

agora. Não há aquilo
a amizade um bem uma coisa
é uma coisa um bem a amizade

agora. Para não perder
as coisas mais pequenas nos olhos
vejo melhor

agora. Amo-te só
só te amo
aqui
só a morte
chega
amar-te

agora. Um disparate a lembrança
no coração
dilacera-te

agora. Lado a lado
sem esquecer
todas as coisas
prolongam-nos uma distância

agora. O amor sempre
doente
eu amei sempre
a imperfeição

agora. Sou simples
complico-te
tal como és

agora. Agora mesmo passa
por aqui entra fica,
guarda
os olhos
blindados

agora. Brinca com as pedrinhas
azambrado sob a lua
a concha na mão
o vazio a suster

agora. O frio delicadamente
revira dentro das camisolas
o corpo só isso

agora. Faço amor
dou contigo
corpo adentro
persigo-te

agora. Ajeito as lágrimas
ligeiramente feridas
ficam a jeito

agora. Tudo
dorme comigo
antes despenhando-se
contigo

agora. Apanho tudo
o fundo a pé-coxinho
cabra-cega a infância

agora. O véu cicatriza
a ignorância a justiça
o teu sexo crescendo
cerejeira

agora. Ultrapassa a loucura
escreve a vaidade
ultra-light

agora. Perdi o medo
custa-me andar
por aí
onde estás?

agora. Um desprazer
o elmo durando face
anagrama o ódio
gorila

agora. Desvio até
os olhos
que te viram dentro
segredos

agora. Passas tempo
sei aí
beber
para saciar
dói

agora. Faz o desespero
absoluto
não voltes
volta

agora. Essa densa apoderação
alarga a presença das coisas
os olhos HI-FI
recuperam-se

agora. Se a morte fosse uma flor
seria buganvília –
folha denuncia a delicadeza
em que dissimulas a vida

agora. Um sentido
partilha e esconde
a colheita a identidade
só o lume pulsa intacto

agora. Funâmbulo
no débil leme onde embriagas
a noite – escreves: antes pétala
embrumada num final perplexo.
Nota: Aceitam-se sugestões para imagens.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

RESPIGAR

Mike Worrall


O que foi que eu fiz ao propício dia

quando tudo era possível:
desembrulhar sobre a íris
e nela mergulhar sem sede
outro acontecer

destemido intima o que te fere

(durante o pecado imaginado carne
– a minha – absorta de conseguido mel)

e sob a brandura dos fragmentos proclama
de extenuado sangue fantoche
o ardor ampliado no ror de gestos

e rente ao embrulhado mundo
vigia o que se avista do outro rosto:

o mar consistente do mundo, o ar
toda a vida, a adicta, bojando a jangada de pele
onde os humanos assomam e desaparecem;

e se tudo desse certo à mercê do desacerto:
o altar de seus mortos reinventado sob a justiça,

nesses ( exactos ) dias. de extática vertigem,
justamente,

julgando derivar outra fonte de terra e um vento
desassombra todos os ímpetos,

ainda sob o efeito,
a aranha,
na teia visceral em que vicias e arrebatas do probo nada a estátua,
esmaga;

e, em volta, o vento volta para dentro - rodopia -
aí, à revelia, onde és maré letal
e o vórtice contém nas suas margens:
o massacre
– imagem às imagens –
descontínuos crânios

caseiro material humano
num dos prováveis muitos alguidares,
e a imagem não vale o acto aquém do tempo,
durante as mil palavras ditas,
outrora,
o zelo o açougueiro,
agora,
restos de corpo no possível:
ser-se abertamente humano até rebentar a falha qualidade;

e, se não conseguires descer os olhos:
supõe
três noites de completo dia assinando
– o mais-querer a tudo – o mesmo nome,
se era tal-qualmente primoroso o exaltado rosto desenhar
sob a pele desenraizada ao predilecto inimigo

abreviado animal

sob a cinza ainda o âmbar encorpa
o clamor da terra colhendo o elmo de tédio,
indiferente ao rosto,
à beleza do rosto,
à fome e morte

do rosto nos restos:
a cegueira alastra sob o imune chilrear humano;

e, se tudo não basta:
transpõe agilmente
– aos bocados – a simpática
fruição dos cavalos
abatendo a terra:

dentro dessa pobre gente,
activa o hálito
da pétala nocturna.

sábado, 6 de dezembro de 2008

XVII




Nem eu , amor, suspeitei que a fuga nos franquearia o poder de nos exilarmos em sossego, excedendo-nos força e atrito que impede a emoção de não consumar o simples. Como é saber fugir ignorando?

E quanto do mundo, da noite, da solidão, será como sabão misturando-se nas águas. E quanto de mim, em ti, será o sabão da solidão na noite do mundo?

E haverá uma água interdita (amor)? – agregando, cruel, a espuma subtraindo-nos – sós – puros ou sem pudor.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

III


Kim Sung Jin

Acordo, amor, sem urgência para que a noite caia novamente.
E o dia começa a doer enquanto aguardo impotente que passes

desprendido e dos teus lábios a voz se forme som disparado de
encontro a mim, amor.
Aí, amor, um novo acordar eclode iluminando o obscuro receio

de já não me reconheceres ou de que me comeces a amar,
também, obscuramente, desastrado e débil, amor, face aos
momentos sem distância separando-nos.
E delicadamente revisitados (amor), esses momentos, seriam

adormecidos sem urgência de acordar dolentemente para um
novo dia em que aguardarias que passasse e a minha voz
formasse nos meus lábios um som disparado de encontro a ti
amor, iluminando-te, sem precipitação e sem receio.

II

Kim Sung Jin

II

Quando saio, amor, à tua procura, é um mundo visivelmente/ novo que anseio. (Só tu me retiras do meu recolhimento e me/abres secretamente o desconhecido.). Saio todos os dias e todas/ as noites, amor, sabendo que não me procuras, que não sentes a/ privação nos meus gestos desastrados e incorruptos: à tua/ procura. Não pressentes a minha voz, amor, somente delicada/ para ti? Não, não reparas nem ouves os meus apelos/ definhando tímidos, enfraquecendo à tua mercê, amor? Porque/ não me procuras, amor?, eu que me abandonei e abandono/todos os dias e todas as noites para te encontrar diante de mim/ abandonado à minha procura, procurando, procurando/ inevitáveis amor.
Porquê amor? É forçoso que esta procura seja apenas/ docemente desesperada e perdida enquanto saio todos os dias e/ todas as noites não sabendo nunca que mundo desconhecido/ anseias? Porquê, amor, desconheço?

I

Kim Sung Jin
Acontece anoitecer, amor, sem suspeita aos teus olhos –/
o meu corpo peregrino vai tombando no seu caminho: solitário,/ triste e vazio, como vazios, tristes e solitários ficam os meus/olhos exilados do teu aparecer. E apenas a chuva generosa/ o reconforta, amor, de sucumbir distante e inacontecido. Essa/ água abundante é a única presença toldando e embriagando,/ quando já sem forças regresso, lentamente, sem querer revisitar/ os acontecimentos de mais um dia inútil e gasto à espera do/ possível (des)embaraço. E açulada pela minha fraqueza, amor,/ acontece anoitecer amortecendo para fugir ou para reter o que é/ possível. Como se fosse possível saberes ou adivinhares que/ anoiteço com uma mordaça que me impede de dizer tudo o que/ poderia acontecer se doente não estivesse (amor), se em tudo/ pudesse ser diferente ao teu lado, anoitecendo em silêncio. O/ silêncio à tua volta – voltada do avesso para acontecer,/ anoitecer amor junto a ti.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

para que não inventassem que dizia

para que não inventassem que dizia


Revoltou-se na ferida devolvida no confundir do lençol, com o arrojo da indiferença lançou-se/
na arena: alucinava;
Seduzida na sua fúria rompia vermelha viva a carne, oxidado simula em cada ímpeto a afectação/
a opaca razão arremessada na contracção do corpo e lastima a secreta ânsia do seu proveito./
Na ébria desidratação alucina sob um aplauso ultrajado,
só, para que não inventassem, a convulsão do tempo, que dizia.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill

Um só dia durando o corpo
no labirinto do homem entrando
no assombro das palavras amando
como morangos na boca das carpas

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill

Só com a noite
a tua cabeça tomba
derradeira
na mão do remador que desvenda
a inicial clausura dos rios


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Corpo de Árvore 18



Gerhard Richter


18

Tu, rapaz brumoso, que não amas
a poesia, não saberás nunca
que nos olhos a morte retumba
como um trovão após o relâmpago
– despertando o coração que estremece–,
e zunindo fica a melodia
dulcificando toda a água que provirá.

Talvez numa madrugada só
recuperes na travessia da ponte
levando-te para a terra extenuada;
talvez numa outra madrugada
as ervas cresçam vertiginosas, como agora
– tu, rapaz retraído, que não amas
a poesia – afugentas as imagens dos teus horrores,
despontando sós, onde só escutas o feral compasso
do coração avaro, como um telhado vermelho
que a pouco e pouco vê dar lugar a um manto
verde cobrindo a sua estrutura, outrora tão pungente;
talvez numa dessas madrugadas, agora,
ainda, tão difusa, já não abrigues
a tua morte, assim tão perto, como uma pátria
após a guerra.

Tu, rapaz ímpio, que não amas
a poesia, talvez – só – então um coração negro
te una numa terra vulcânica ou num deserto
tão árido – como agora esta madrugada
que incendeia a minha mão – na profusa
dormência da solidão e do fastio da tua
razão, rapaz só não amas a poesia.

Corpo de Árvore 28

Steven Kenny

28

Vou andar por aí abismo,
procuro o jovem negro
que arrefece o coração
com a sua frieza destruidora
e resplandecente nas madrugadas,
magoado erguerei as minhas mãos
mergulhadas na cal do seu peito
e baixarei os olhos – decalco
a imagem negra aterradora
no lixo que vou guardando
para o esquecimento.

sábado, 1 de novembro de 2008

RESPIGAR



Quintana

No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
Lorca
O que foi que eu fiz ao último dia
de abundância

do sol ligando a carne

como a lua abre o inócuo sangue
sem ferir
estimula a simultânea distância
e no seu fio suspende
uma qualquer coisa,
uma qualquer frente que te faça
e nela fende

voz prendendo-nos o espanto,
o nosso agora
lido como uma coisa doméstica
parábola:

o tigre
de tantos poemas prisioneiro
captura a liberdade

até vermos
o touro coberto de rosas

as feridas no dorso do touro
rosas de sangue
dias.
nascendo de noite

nascem como pátrias
as rosas de sangue
no dorso da noite
nosso touro

e são tantas as rosas
que a noite já não sabe
qual das suas pátrias
é a ferida do tigre

captura a rosa do tigre onde eu seja
a garantia ou o núcleo em ebulição,
e brada por mim a perda:
só o mar cresce nos braços dos afogados,
– suspenso – só o único corpo
agregando o que te sustem em pastiche
delirante ou puríssimo veneno;

e como que por um pêndulo ritmado
pelo colidir do sangue no visionário órgão
orgânico coração da carne transforma-me

no ácido de todas as tuas feridas
e de todas as cicatrizes que eu seja

o preferido pesadelo
– sempre – aonde regressas
desarmado como um soldado enlouquecido
nesse vurmo do amor pátria ou esse pejo

ante o fosso de proscrição de tudo
o que oxida no limite,
aquele que consegues, de cada coisa,
– às vezes – adivinhar a vertigem;

nesse frio em que te tinhas
( adiando ou ligando-te ): toda a nudez
estremece perplexidade,

e o desejo
prolonga o deserto de si.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Corpo de Árvore 1

Autor (?)

1

Quando um poema me visita:
adoeço e nu como o nevoeiro
de sobremesa,
fico hirto
a vê-lo entrar de barbatanas.

É um vírus de sílabas e
arsenais de anfíbias imagens.

E escondo-me a um canto de
cerejas segredadas no pulsar
e do húmus faço o mar devasso.

E de veleiro esventro faroleiros,
encontro forcas e pedaços de crianças
afagados numa mortalha de fome,
e batalhas em toalhas de sol; e febril
reclamo nascentes de escuridão
sob casulo de espuma, o embrião, o cadastro,
a borboleta em excesso.

Num privado império: recupero
endereços, furnas, sitiados silos e faróis
crescendo pulmão de luz – noite fora –
noite dentro solidões de terra
presas nos veios da duração e
muito sangue em bagos de romãs, cristais e teias.

E conto as pedras da calçada
enfeitadas de perfeitos fósseis;
numa rua estreita enterro anzóis
e uso as palavras como vagões,
e o comboio segue
por uma história no verso
descarrilando túnel de ossos:

é uma mulher bela
com a cabeça inchada de pesadelos,
está sentada numa esplanada que voa
e espreme sonhos de encontro à sorte
de um isqueiro que cai e é
de uma mulher que de bela o arrasta na fome.


E eu sei que o poema está repleto
e emociono-me de coisas pensadas, e
uma labareda de línguas e olhos mutila
os filhos de lume na sua cessação de cinza, e

– como palavras num lago
na trajectória
dum peixe que de só parece morto – há vozes que nascem

com a lua, morrem com o mar.

E cantam como se de choro se erguesse o vento.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Dizem

Clint


dizem

As mãos serviam-lhe, dizem, teve medo, apodrecia no rebentar da própria força, /
a terra descia-lhe, mostrava a raiz desapegando-se de todo: agarrando-se a tudo, erecta;/
obrigou-se a uma certa idade, dizem, no corpo, algures, suporta-se a correcção, em qualquer lugar poderia/ encrostar uma expressão, até se ver na pele o visco que a adormece e a acorda, como no postiço riso se vê/ o vestígio de uns dentes dormindo dentro de um coração; vestia-se de circunstância/
– a fenda, dizem ( hirta implacável ) /
traria um qualquer mundo, trataria dele como qualquer outro – mas ali o corpo/
não lhe cabia, a sua vitrina saia-lhe pela boca: "Um dia escreverás que te dei um beijo,/
aí onde os olhos se servem de tudo"; um riso emaranhou-lhe o rosto dessa certeza e viu, póstumo, em/ muitos olhos, o tal riso, a carne mal ocupada, esse tal gozo, dizem; /
voltou-se para o corpo e dançou pela noite, esse lugar furtivo – o corpo aguentou, ouve /
o que faz dançar as carnes; dizem, suporta a devassa, essa coisa da terra aí à espreita nele.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

como é possível dizer

Odd Nerdrum

como é possível dizer

Soterrados, como é possível dizer, investigavam as entranhas, a face magra de certezas instigava/
à febril inquirição, corpo no corpo, soterrados, como é possível dizer, mostraram as palavras próprias/
desembrulhadas pelo hálito sôfrego no exíguo espaço das carnes, a língua no seu movimento lento/
desafiava a outra língua, no seu movimento lento, a declarar a solidão; substantivas, ali, alimentando/
o sangue próprio embriagado, reduzido à combinação soterrada nas próprias carnes, tristes,/
profusamente tristes falhavam a sua tristeza, por outra ainda soterrada, como é possível dizer,/
reduziam o mundo ao sentido pulsante da fome.

sábado, 25 de outubro de 2008

RESPIGAR

Michael Ryan
No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
Lorca

Respigar

O que foi que eu fiz ao dia de festa,
como uma flor deitada à beira do morto
imagina como morro
familiarmente e devagar,

devagar celebra – de ontem – o acerbo
e deseja relâmpago
a terra ou eu a tua água

aveludada sede
o poema
meu

esse pomar no filão de sóis
entardecendo-nos lado a lado,
e a vontade: não, não
chegar o quanto antes
a esse lado que nos traz ioiô;
ali o boomerang-amor
impedindo-nos a fuga fácil
a esse fluxo de fastio,
e a surpresa reacendo-nos
os olhos e o ventre
lado a lado: o gozo da caça,

os risos das noites de chuva arrancando
da puberdade o mar,

o coração exposto ao veneno
múltiplo das palavras

e, no grupo de cães, as cadelas
lambiam o próprio pêlo e o sexo
e bailavam atrás de nenhum rabo
e estabeleciam o preceito
e a intensidade da dentada

e o tão profundo medo de olhar
o sol vazado sob a areia,
veias de terror, as pegadas
tatuando dias e noite:
até morrerem – deslumbradas –
com a carne;

e a dor fecunda como a lua,
no seu movimento peculiar,
os olhos da infância,

o gozo e o riso dos olhos da infância
extinguindo-nos
diamante o sentido livre;

e o imprevisto viveu outra vez
a carne, o frio, e neles a ficção
ficando aquém de todo o sangue -
esse momento disseminando-nos
em agora: bailarina ou soldado,

e a metáfora embala, lambe
o coração em bala mata
o impossível nas forças armadas

e as nossas forças blindadas,
de visita ao corpo de batalha;

outra vez, já enternecido desse dia, fica
segando inevitáveis colmeias ou o coração
escorrendo ou discorrendo

– o quanto gostes –

exclui o mel – sem esquecer – o quase
familiar compacto
adoecer da noite.
(...) Continua ...

Nada se disse - como quase nada

Hussar

nada se disse - como quase nada

Arrojou-se até ao umbral – nada se disse – arranjou os olhos, preparou-os, incutiu-lhes a apetência, /
o apetite, a aparência – nada se disse – olhou para o umbral: apartou-se do coração, saiu do alcance /
do umbral e foi, por aí, pela terra alcatroada – disse para os olhos: turistas!, turistas nesta noite; sai, sai/ como quase nada – abriu todo o corpo: os olhos, a terra alcatroada – nada se disse – voltou para dentro/ dos passos, empalideceu; alternou dentro dos olhos as presenças arranjadas: dispô-las, supôs a festa/ abeirando-se – nada se disse – alvoraçado no dilaceramento olhou: agora o tolhimento até aos ossos, /
suspendeu os olhos – como quase nada – sabia a boca rasgada /
e rasgaria uma a uma as faces: "qual delas queres" "vá despacha-te" "o coração que trago – trago-o num só/ trago todas as noites – é sempre o mesmo" " não, não me perco – os olhos – esses atravessam/
os ribeiros a galope; os lagos são para olhar através dos olhos dos outros: criam-se e querem-se no lodo"/
" vá tolhe a face" – nada se disse – encastrou-se ao corpo, enroscou-se, viu o coração acabado, fez saltar/ os olhos – como quase nada – mostrou os dentes, agora, postiços, eram um enfeite, noite, noite,/
nada se disse – o umbral ( pensou),/
regressou com os olhos embrulhados, a terra alcatroada, turistas!, turistas!, noite, esse poço/
dentro do corpo ­­– como quase nada – tropeçou nos olhos, o roseiral,/
pétala a pétala viu tudo:/
o corpo seco, a casaca de rosas – nada se disse – /
vestiu-se desse corpo como o de uma pétala, encarquilhou os olhos nele, ( pensou) umbral – nada se disse/ – obscurecido o coração – como quase nada – desconfiou dele./

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill

Um só dia durando pornográfico
nas tuas mãos traumáticas
dissolvendo erótico o aroma
do veneno deste amor penetrando

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill

Só com a noite
maníaco voraz vislumbro
amor
dormindo por entre o espinho
por entre as mãos secretas

CORO

TANZANIA..TANZANIA - Darwin's Nightmare


& outros docs

Se a minha palavra se abeirasse dos teus olhos
não sei se seria um lago, neve, iogurte dentro do prazo, a leve vida,/
ou Elisa cantando: Tanzânia, T-a-n-z-â-n-i-a, T-a-n-z-â-n-i-a,/
T-a-n-z-â-n-i-a sem adivinhar um punhal
levando a morte ao seu corpo;

sei, talvez, que essa palavra seria sempre um objecto secundário,/
um acessório de uma memória suja, demente ou ambição de vertigem /
face de um fragmento rudimentar com que irias à procura
de qualquer coisa que te lembrasse
que não existe diz-que-diz-que na solidão
essa pele que absorve a sombra da noite
outra vez vem ter comigo, imploro!
— a mão de Sacha nas mãos

da mãe de Sacha; os olhos das mães crescendo
como a tensão nas mãos da mãe de Sacha —
tanta face de lume! quando pensas noutro humano
tão impartilhável como é para mim o teu corpo de remendos,
depois vêm as palavras que seguram
o homem empoleirado, podando a preceito os ramos
de árvores russas, isso, as árvores eram russas,
as copas das árvores russas, a cidade ao fundo,
um enquadramento, um plano
tal como o rosto de infância a ser enterreado
na improvisada vala comum,
a areia tapando o rosto infantil de olhos abertos,
os corpos amontoados na carrinha de caixa aberta,
mas esse relâmpago em câmara-lenta — a última imagem — os olhos abertos/
o bebé, e outras palavras juntam-se a ti: manga-curta manga-comprida

porco-preto porco-branco

« o porco-preto é mais difícil de conseguir, corre mais»

e ficas a pensar na possibilidade do nome das coisas, das tuas coisas quotidianas,/ tão próximas da tua indiferença,

« o porco-preto é mais difícil de conseguir, corre mais»



(...) Continua ...

CORO

Coro é um poema longo. E ainda em esboço. Contudo apresentaremos a sua evolução.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill
Um só dia durando a voz
subterrânea ranhura na cortina
verde de teu coração florindo
puro na tensa atenção do amor

Tempo Bifurcado

Elizabeth Magill
Só com a noite
a pupila partilha a cor
exacta
extraindo mel no espelho rasurado
arduamente pelo medo

Corpo de Árvore, 7.

Saturno Buttò

O veneno na taça inclina folhas:
uma a uma revêem o lago,
a cidade trespassada de eléctricos
e ondas que circundam as ruas.

E tu desertas no corpo o vestígio
da vital conquista.

A cidade inquieta-se, e
no inclinado basalto escurecem
os olhos e toda a paixão
do mundo distante.

Num só sentido
correrá a lágrima para o lábio.
E numa só circunferência
se fecha o sol.

Num só chão se perdem os passos
e num só as pegadas se encontram,
após as despedidas que esquecem
os arbitrários mapas ou esse céu
onde emparedas: o gáudio,
as irrisórias demandas, a senilidade.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Corpo de Árvore, 10.

Dino Valls - Triviun - Oil - 1999






Era uma mulher sem braços que te apedrejava
no jugo dos indícios, quando as lágrimas soltas
já só arranhavam a carne – a certeira pedra da noite,
a mutilação no sexo das amantes,
pontapé o rosto de sol:
- quando na mão os dedos se multiplicam num gesto
no sangue a fractura do amor dilacera - .


Era, assim, a parábola, quando a palavra
já não entretinha a descomunal cabeça
do sonho entrelaçado pelo pesadelo,
visita constante no palácio:
- quando na mão os dedos se multiplicam num gesto
no corpo o veio labiríntico é o amor - .

Era um lago de Narciso o instante repetido
no perfil da carícia, e na porta um degrau,
vertical, simulava o berço –
de orelhas pendentes ainda digito
as mais fabulosas histórias, a quem
um bárbaro Ulisses quis contar:
quando na mão os dedos se multiplicam num gesto
é Penélope tecendo o repouso do amor, o teu sono tranquilo.



domingo, 12 de outubro de 2008

XX



Kim Sung Jin - Pure Reson - 2008 (Oil on Cavas)

Ato ao meu desejo o teu corpo, amor. Ato amor ao desejo, ao meu corpo. Acto (amor) és tu. Ato-me a ti, de desejo comovida.


Kim Sung Jin - Secret - 2007 (Oil on Cavas)


E tu? Como me desprendes de ti? Talvez incêndio ou morte de ti,
de mim, ali esquivos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Le Clézio, O Eleito.

Jean-Marie Gustave Le Clézio

Ma vie sauvage, par J.M.G. Le Clézio

«L'Afrique était puissante. Pour l'enfant que j'étais, la violence était générale, indiscutable. Elle donnait de l'enthousiasme. Il est difficile d'en parler aujourd'hui, après tant de catastrophes et d'abandon. Peu d'Européens ont connu ce sentiment. Le travail que faisait mon père au Cameroun d'abord, puis au Nigeria, créait une situation exceptionnelle. La plupart des Anglais en poste dans la colonie exerçaient des fonctions administratives. Ils étaient militaires, juges, district officers (ces DO dont les initiales, prononcées à l'anglaise, Di-O, m'avaient fait penser à un nom religieux comme une variation sur le Deo gratias de la messe que ma mère célébrait sous la varangue chaque dimanche matin).
Mon père était l'unique médecin dans un rayon de soixante kilomètres. Mais cette dimension que je donne n'a aucun sens: la première ville administrative était Abakaliki, à quatre heures de route, et pour y arriver il fallait traverser la rivière Aiya en bac, puis une épaisse forêt. L'autre résidence d'un DO était la frontière du Cameroun français, à Obudu, au pied des collines où habitaient encore les gorilles. A Ogoja, mon père était responsable du dispensaire (un ancien hôpital religieux délaissé par les sœurs), et le seul médecin au nord de la province de Cross River. Là, il faisait tout, comme il l'a dit plus tard, de l'accouchement à l'autopsie. Nous étions, mon frère et moi, les seuls enfants blancs de toute cette région. Nous n'avons rien connu de ce qui a pu fabriquer l'identité un peu caricaturale des enfants élevés aux «colonies». Si je lis les romans «coloniaux» écrits par les Anglais de cette époque, ou de celle qui a précédé notre arrivée au Nigeria - Joyce Cary, par exemple, l'auteur de «Missi Johnson», je ne reconnais rien. Si je lis William Boyd, qui a passé lui aussi une partie de son enfance dans l'Ouest africain britannique, je ne reconnais rien non plus: son père était DO (à Accra au Ghana, me semble-t-il, puis à Ibadan).
Je ne sais rien de ce qu'il décrit, cette lourdeur coloniale, les ridicules de la société blanche en exil sur la côte, toutes les mesquineries auxquelles les enfants sont particulièrement attentifs, le dédain pour les indigènes, dont ils ne connaissent que la fraction des domestiques qui doivent s'incliner devant les caprices des enfants de leurs maîtres, et surtout cette sorte de coterie dans laquelle les enfants de même sang sont à la fois réunis et divisés, où ils perçoivent un reflet ironique de leurs défauts et leurs mascarades, et qui forme en quelque sorte cette école de la conscience raciale qui supplie pour eux à l'apprentissage de la conscience humaine - je puis dire que, Dieu merci, tout cela m'a été complètement étranger.
Nous n'allions pas à l'école. Nous n'avions pas de club, pas d'activités sportives, pas de règle, pas d'amis au sens que l'on donne à ce mot en France ou en Angleterre. Le souvenir que je garde de ce temps pourrait être celui passé à bord d'un bateau, entre deux mondes. Si je regarde aujourd'hui la seule photo que j'ai gardée de la maison d'Ogoja (un cliché minuscule, le tirage 6x6 courant après la guerre), j'ai du mal à croire qu'il s'agit du même lieu: un grand jardin ouvert, où poussent en désordre des palmiers, des flamboyants, traversé par une allée rectiligne où est garée la monumentale Ford V8 de mon père. Un maison ordinaire, avec un toit de tûle ondulée, et au fond, les premiers grands arbres de la forêt. Il y a dans cette photo unique quelque chose de froid, presque austère, qui évoque l'empire britannique, mélange de camp militaire, de pelouse anglaise et de puissance naturelle que je n'ai retrouvé, longtemps après, que dans la zone du canal à Panamá.
C'est ici, dans ce décor, que j'ai vécu les moments de ma vie sauvage, libre, presque dangereuse. Une liberté de mouvement, de pensée et d'émotion que je n'ai plus jamais connue ensuite. Les souvenirs trompent, sans doute. Cette vie de liberté totale, je l'aurai sans doute rêvée plutôt que vécue. Entre la tristesse du sud de la France pendant la guerre et la tristesse de la fin de mon enfance dans la Nice des années cinquante, rejeté de mes camarades de classe du fait de mon étrangeté, obsédé par l'autorité excessive de mon père, en butte à la très grande vulgarité des années lycée, des années scoutisme, puis pendant l'adolescence sous la menace d'avoir à partir faire la guerre en Algérie.

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Alors les jours d'Ogoja étaient devenus mon trésor secret, le passé lumineux que je ne pouvais pas perdre. Je me souvenais de l'éclat sur la terre rouge, le soleil qui fissurait les routes, la course pieds nus à travers la savane jusqu'aux forteresses des termitières, la montée de l'orage le soir, les nuits bruyantes, criantes, notre chatte qui faisait l'amour avec les tigrillos sur le toit de tûle, la torpeur qui suivait la fièvre, à l'aube, dans le froid qui entrait sous le rideau de la moustiquaire. Toute cette chaleur, cette brûlure, ce frisson. [...]
Si je n'avais pas eu cette connaissance charnelle de l'Afrique, si je n'avais pas reçu cet héritage de ma vie avant ma naissance, que serais-je devenu? Aujourd'hui, j'existe, je voyage, j'ai à mon tour fondé une famille, je me suis enraciné dans d'autres lieux. Pourtant, à chaque instant, comme une substance éthéreuse qui circule entre les parois du réel, je suis transpercé par le temps d'autrefois, à Ogoja. Par bouffées cela me submerge et m'étourdit. Non pas seulement cette mémoire d'enfant, extraordinairement précise pour toutes les sensations, les odeurs, les goûts, l'impression de relief ou de vide, le sentiment de la durée.
C'est en l'écrivant que je le comprends, maintenant. Cette mémoire n'est pas seulement la mienne. Elle est aussi la mémoire du temps qui a précédé ma naissance, lorsque mon père et ma mère marchaient ensemble sur les routes du haut pays, dans les royaumes de l'ouest du Cameroun. La mémoire des espérances et des angoisses de mon père, sa solitude, sa détresse à Ogoja. La mémoire des instants de bonheur, lorsque mon père et ma mère sont unis par l'amour qu'ils croient éternel. Alors ils allaient dans la liberté des chemins, et ces noms de lieux sont entrés en moi comme des noms de famille, Bali, Nkom, Bamenda, Banso, Nkong-samba, Revi, Kwaja. Et ces noms de pays: Kaka, Nsungli, Bum, Fungom. Ces hauts plateaux où avance lentement le troupeau de bêtes à cornes de lune à accrocher les nuages, entre Lassim et Ngonzim.
Peut-être qu'en fin de compte mon rêve ancien ne me trompait pas. Si mon père était devenu l'Africain, par la force de sa destinée, moi je puis penser à ma mère africaine, celle qui m'a embrassé et nourri à l'instant où j'ai été conçu, à l'instant où je suis né.»
«L'Africain», par J.M.G. Le Clézio, Mercure de France, coll. «Traits et portraits», 110 p., 15,50euros (en librairie le 11mars).
Tout le dossier de BibliObs sur J.M.G. Le Clézio
Source: «Nouvel Observateur» du 4 mars 2003
Toute l'actualite littéraire
http://bibliobs.nouvelobs.com/20081009/7714/ma-vie-sauvage-par-jmg-le-clezio

Dizes

dizes


Como se desfaz a respiração nos rostos: alongando ao ébano das máscaras o desperdício, dizes,/
na evidência há ( quando olhas ) um ímpeto suicida, desferindo com emoção um dardo lanças/
na derradeira verdade dos corpos a repetição, dizes; /
e as máscaras confundem-se no fôlego das faces sôfregas, violentando a pulsão /
os mortos concedem-te um verso, consagrando a tragédia óssea, e a carne teima prisioneira o improviso,/
não foge, dizes.
São lâminas magníficas os olhos e abrindo a boca duplicas todas as coisas doentes e no fastio,
que não cuidas, constróis uma jangada e cospes a fome, essa certa ignorância que atravessa os corpos e, dizes, quando/
ninguém te escuta: são rápidas as mortalhas enfaixando nos olhos o incêndio. /
Não adianta partir com gestos decepados ou fazer uma festa se não celebras as ravinas cansadas da raiva/
e o depois é uma parábola de cinza, faz ulcerar, onde se traz vivo o coração, /
a água ou o cinturão de lume – o que viola o corpo de desejos, dizes; /
e o corpo é de cinza quando deseja o amor que faz: não abre girassóis nem conhece saindo do lodo /
outro corpo: deixa-te preso aos músculos a respiração do moribundo/
e os olhos crestam com esse abalo, dizes, supões atenuar a dor e sem poderes /
perpetuas um intruso golpe, e, tal como a lua não volta a face, /
um presente convulsivo abrevia a sua glória.

Self-Poetry

Neste Blog só se servirá Self-Poetry, assim, doméstica, caseira, de trazer por casa, como os chinelos de quarto, os roupões, as batas, os aventais... Como os dias mal levantados, versos de olheiras fundas, dizendo como foram os clarões na noite.
Terão aquele ar de palavras-desgrenhadas, sem o toque do design y da edição ... São já versos lidos, adormecidos y acarinhados y, sabemo-los, relidos por aquele Leitor que sempre quisemos ter ( que honra. que orgulho.). Assim aconteceu dar versos como quem dá amizade y melhor a aconchega quando vem.
Agora é a vez do Mundo, dos outros Humanos.
Nota Importante: Nenhum verso foi considerado Editável por qualquer Editor do País.