sábado, 25 de outubro de 2008

RESPIGAR

Michael Ryan
No, no. Yo no pergunto, yo deseo.
Lorca

Respigar

O que foi que eu fiz ao dia de festa,
como uma flor deitada à beira do morto
imagina como morro
familiarmente e devagar,

devagar celebra – de ontem – o acerbo
e deseja relâmpago
a terra ou eu a tua água

aveludada sede
o poema
meu

esse pomar no filão de sóis
entardecendo-nos lado a lado,
e a vontade: não, não
chegar o quanto antes
a esse lado que nos traz ioiô;
ali o boomerang-amor
impedindo-nos a fuga fácil
a esse fluxo de fastio,
e a surpresa reacendo-nos
os olhos e o ventre
lado a lado: o gozo da caça,

os risos das noites de chuva arrancando
da puberdade o mar,

o coração exposto ao veneno
múltiplo das palavras

e, no grupo de cães, as cadelas
lambiam o próprio pêlo e o sexo
e bailavam atrás de nenhum rabo
e estabeleciam o preceito
e a intensidade da dentada

e o tão profundo medo de olhar
o sol vazado sob a areia,
veias de terror, as pegadas
tatuando dias e noite:
até morrerem – deslumbradas –
com a carne;

e a dor fecunda como a lua,
no seu movimento peculiar,
os olhos da infância,

o gozo e o riso dos olhos da infância
extinguindo-nos
diamante o sentido livre;

e o imprevisto viveu outra vez
a carne, o frio, e neles a ficção
ficando aquém de todo o sangue -
esse momento disseminando-nos
em agora: bailarina ou soldado,

e a metáfora embala, lambe
o coração em bala mata
o impossível nas forças armadas

e as nossas forças blindadas,
de visita ao corpo de batalha;

outra vez, já enternecido desse dia, fica
segando inevitáveis colmeias ou o coração
escorrendo ou discorrendo

– o quanto gostes –

exclui o mel – sem esquecer – o quase
familiar compacto
adoecer da noite.
(...) Continua ...

4 comentários:

Helena Figueiredo disse...

Poeta e por aqui passo. recomendo-lhe a leitura de um poema que acabo de inserir no meu blog: " Viajem a Frankfurt."

Um abraço:

L.C.

Madalena S. disse...

Ilustraria extraordinariamente bem As Respigadeiras de Jean-François Millet.
E também não ficaria mal, lido em fundo para algumas das imagens do filme de Varda,Os Respigadores e a Respigadora.
É a minha opinião.

Mapas De Espelho ( Imagem Suzzan Blac) disse...

Madalena S.
O Título e o fio condutor deste exercício vêm exactamente dessas duas Obras-Primas que refere.
Escolhi o quadro de Michael Ryan pelo olhar interior de quem abre a pele, como que, para acreditar melhor em si... em tudo.
Vale. Y Obrigada.

Helena Figueiredo disse...

E aqui venho mais uma vez, a este excelente espaço poético, para lhe recomendar a leitura de um magnífico poema de Tomas Tranströmer: FUNCHAL, traduzido por mim, eque se encontra a partir deste momento no meu blogue.

Um abraço:

L.C.